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Memórias do Front: novembro 2008

O objetivo deste blog é resgatar, através de artigos, histórias de pessoas que se envolveram no maior conflito da História - A Segunda Guerra Mundial - e que permaneceram anônimas ao longo destes 63 anos. O passo inicial de todo artigo publicado é um item de minha coleção, sobretudo do acervo iconográfico, a qual mantenho em pesquisa e atualização. Os textos originados são inéditos bem como a pesquisa que empreendo sobre cada imagem para elucidar a participação destes indivíduos na Guerra.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

O desembarque do 1º Escalão da FEB em Nápoles

O dia estava claro e ensolarado. Fazia calor. Os homens desembarcavam um a um, praças e oficiais carregando suas bagagens. Depois de quase 15 dias a bordo do transporte de tropas, a sensação de se pisar em terra firme foi descrita por alguns veteranos de forma curiosa. O sargento Ferdinando Piske do 6º Regimento de Infantaria, afirmou que foi “com saudade que nos despedimos do maldito ‘morcego’ e, saco “A” nas costas, fomos deixando nossa residência provisória”.[1] O tenente Massaki Udihara , também do 6º, escreveu em seu diário que “não tive sensação alguma em pisar solo de novo. Nem aquela que se diz ter quando se pisa em solo estranho”[2]. Estes homens estavam, afinal, em Nápoles. Era o dia 16 de julho de 1944 e os soldados do 1º Escalão da Força Expedicionária Brasileira estavam desembarcando rumo à guerra.

Haviam embarcado entre os dias 29 e 1 de julho. O navio ficou três dias no porto até que a totalidade dos elementos estivessem a bordo. A operação foi coberta de sigilo e os homens não tinham idéia para onde estavam sendo removidos quando os deslocamentos se iniciaram. Os soldados, em geral, receberam uma folga extraordinária do final do dia 27 até as 18:00 horas do dia 29, afim de resolverem seus últimos problemas antes do embarque. A ordem era clara: quem não retornasse até as 18 horas seria, invariavelmente, considerado desertor.

A primeira leva de embarque, na qual estava incluído o Sargento Piske, saiu da Vila Militar no Rio de Janeiro às onze horas da noite do dia 29 via trem até o porto do Rio. Lá, os soldados se depararam com a visão do gigantesco navio de transporte de tropas americano General Mann. Este navio tinha capacidade de transportar mais de 6 mil homens, além de sua tripulação. Os soldados eram acomodados em galerias com uma média de 450 leitos em cada uma, na forma de beliches com quatro andares.

O transporte de tropas levaria ainda parte do Estado Maior da FEB – o General Mascarenhas e o General Zenóbio estavam a bordo -, o 6º RI, o Batalhão de Saúde, o 2º Grupamento de Obuses e outros elementos que integravam a 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária (1ª DIE).

O navio partiu pela manhã do dia 2 de julho de 1944. A imagem que ficou gravada na mente da maior parte dos homens naquele dia foi a do Cristo Redentor, acima no Corcovado, enviando uma benção a todos que se deslocavam para o Teatro de Operações ainda em segredo. Piske assim se recorda: “Na saída da barra, um espetáculo inesquecível aconteceu de repente. A cerração baixou um pouco e lá no alto, emoldurado por um céu azul imaculado apareceu a estátua do Cristo, no alto do Corcovado. Parecia que o Senhor nos dava adeus e nos abençoava nessa viagem, de rumo desconhecido”.[3] O general Mascarenhas, sempre magnânimo, teve a mesma impressão: “Do Corcovado, circundado de bruma, emergia o Cristo Redentor, fitando os seus fiéis que para outras terras partiam com o objetivo de, ombro a ombro com os nossos aliados, defender o rico patrimônio da civilização Cristã”.[4]

A rotina dentro do navio aos poucos foi tomando os homens; os coletes salva-vidas não poderiam ser tirados em hipótese nenhuma; os enjôos afetaram a maior parte da tropa e o medo constante de um ataque submarino afetava a rotina diária. Mas de uma coisa Piske se lembra muito bem: as refeições a bordo do General Mann eram ótimas. Ao estilo americano, possuíam bacon, suco de frutas e as frutas, propriamente ditas. Acostumados ao rancho do Exército Brasileiro, a comida foi o primeiro choque que os brasileiros tomaram ao conhecer a organização de guerra do exército americano.

No dia 15 de julho já estavam na área do Mediterrâneo. O Tenente Udihara reconhece as ilhas Egadi, que ficam próximas as costas de Sicília e advinha onde o navio iria parar: Nápoles: “Já desde ontem estava desvendando o segredo, de todos conhecidos, do nosso destino: Nápoles. Amanha pela manha lá estaremos vendo o Vesúvio”.[5]

O navio iniciou os procedimentos para atracar no porto de Nápoles. Os homens estavam ansiosos e cansados da vida do general Mann. Foram 15 dias de viagem, de enjôo, de falta do que fazer; e a grande surpresa: a baía de Nápoles, na visão de Piske “era um vasto cemitério de navios afundados!”[6]. O Vesúvio dominava a paisagem, não pelo tamanho, mas pela fumaça que saia de seu cume. Entrou em erupção pela última vez ainda naquele ano de 1944, não ocasionando danos ao ambiente. Todos se recordavam das histórias ouvidas sobre sua mais famosa erupção, ocorrida no ano 79 que enterrou uma cidade romana que ficava próxima ao vulcão.

Atracaram por volta do meio dia e o desembarque se iniciou. Vemos na imagem que ilustra este artigo soldados desembarcando carregando seus pertences e, no ombro esquerdo, o patch verde com a palavra “Brasil”. Os soldados com fuzis são militares americanos, auxiliando a operação de desembarque. Bem ao fundo, próximo a rampa de desembarque, um soldado com uma câmera filma os homens desembarcando. No alto, o restante aguarda a chamada para a descida. Pode-se enxergar também a tripulação do General Mann com cobertura branca na cabeça.

Navios de todos os tipos estavam atracados no porto. Narrando a atuação na guerra do tenente José Gonçalves, também do 6º RI, César Maximiano nos diz que aquela visão fez com que os soldados percebessem a dimensão do conflito em que se envolviam. [7] Estar na Itália significava se envolver na maior guerra de todos os tempos. E a enfrentar um inimigo que assolava a Europa desde 1939. Os soldados não sabiam o que iriam encontrar; não imaginavam como seria a resistência do inimigo nem como seria a vida dentro dos fox-holes para os homens da infantaria. Traziam, no entanto, a vontade de lutar pelo seu país.

Saindo do porto, os soldados brasileiros entraram em contato com a miséria da guerra. O tenente Udihara desceu por volta das três horas da tarde e não pode deixar de notar a pobreza e a destruição da cidade italiana. Esta foi a impressão que mais marcou os soldados brasileiros: os efeitos da guerra junto a população civil que nada tinha a fazer, além de se lamentar. Para ele o povo era “aparentemente pobre. Crianças sujas, esfarrapadas. Expressão de desanimo, tristeza, opressão, de falta de vitalidade em quase todos. (...) Por onde passamos tudo fechado e sem vida. (...) a pobreza choca de doer e deixar meio enjoado.”[8] Mulheres italianas com saias curtas se aglomeravam ao redor da coluna de soldados, curiosas. Era a prostituição que campeava pelas ruas em troca de comida, chocolate ou cigarros. Com a marcha a pé e com uniforme verde-oliva, os primeiros soldados foram confundidos com prisioneiros alemães. Mas o caldeirão étnico que formava a FEB bem como o distintivo Brasil no ombro revelou aos italianos serem aqueles soldados da liberdade. Em poucos minutos as pessoas passaram a mendigar por comida e cigarros, mas os brasileiros nada levavam a mão.

A marcha durou cerca de uma hora até chegarem a uma estação de trem onde embarcaram. Chegaram, cerca de 40 minutos depois já anoitecendo, a um acampamento militar na cratera de um vulcão chamado Astronia, próximo ao subúrbio napolitano de Bagnoli. O local era lindo. Cercado de montes elevados e arborizado era o primeiro acampamento da FEB. Ali ficariam cerca de dez dias: “A tropa permaneceu em Agnaro, sua primeira escala, durante cerca de 10 dias, quatro deles alimentando-se com enlatados, dormindo ao relento e a mercê das intempéries. (...) conforme havia sido combinado tudo [material necessário para o estacionamento da tropa] deveria ser fornecido pelos norte americanos e indenizado pelo Brasil. Mas nada foi providenciado, sob alegação de os oficiais não terem sido alertados para essa previsão” [9]. Ali a tropa receberia as primeiras instruções antes de ser novamente deslocada. A partir de então, a FEB estava oficialmente incorporada ao V Exército Norte-Americano e, dentro de algumas semanas, passaria pelo seu batismo de fogo que só terminaria em abril de 1945.

[1] PISKE, Ferdinando. Anotações do Front Italiano. Florianópolis: PCC, 1984. p. 27
[2] UDIHARA, Massaki. Um médico Brasileiro no Front. São Paulo: Hacker Editores, 2002. p. 52
[3] PISKE, p. 21
[4] MORAES, J.B. Mascarenhas. A FEB pelo seu Comandante. 2°. ed. Rio de Janeiro, 1960. p. 24
[5] UDIHARA, p. 51
[6] PISKE, p. 26
[7] GONÇALVES, José. MAXIMIANO, César. Irmãos de Armas. São Paulo, Codez, 2005. p. 60
[8] UDIHARA, p. 53
[9] MOURA, Aurélio. A luta antes da guerra. Revista Nossa História, ano 2 nº 15 , janeiro 2005. p. 21


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segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Tenente Samuel Battalio: Bombardier líder em um B-17

A dor que sentia era horrível. Sua perna esquerda havia sido diretamente atingida por um estilhaço de Flak nas proximidades do alvo primário, o pátio ferroviário de Hamm, na Alemanha, naquele início de tarde de 19 de setembro de 1944. O sangue que corria de seu ferimento banhava toda a grossa roupa que usava para escapar do frio das altas altitudes. O tenente Samuel Battalio era, naquela missão, o Bombardeador líder. Sua tarefa principal era localizar o alvo com precisão e dar o comando para que os outros aviões de seu grupo lançassem suas bombas sobre o alvo. Seu senso de dever e responsabilidade fez com que, mesmo ferido, continuasse o trabalho iniciado horas antes, quando Battalio e sua tripulação, sob comando do Coronel William Travis, decolaram a bordo do B-17 44-8017 "The Sad Sack” em direção a Alemanha.

Battalio havia se alistado em 1939 no Exército dos Estados Unidos da América. Posteriormente pediu transferência para a Força Área do Exército como cadete. Recebeu treinamento para bombardeador e, provavelmente, se formou em 1943. Após a formatura, foi transferido para um centro de treinamento intensivo de vôo onde conheceu a sua tripulação e lá passou também a conhecer melhor um B-17. Dali em diante, este avião seria seu passaporte de ida e volta para a guerra.

Samuel Battalio chegou a Inglaterra no verão de 1944. Foi designado para o Centro de Substituição de Tripulação em Bovingdon. Lá aguardaria ser designado para um dos milhares de grupos de bombardeio que estavam aquartelados na Inglaterra e faziam parte da 8ª Força Aérea.

Designado foi para servir junto ao 327º Esquadrão de Bombardeio ligado ao 379º Grupo de Bombardeio da 8ª Força Aérea. A este grupo pertencia também o B-17 conhecido como Lil Satan cuja história aqui já foi descrita. (Lil Satan: O destino de uma Fortaleza Voadora. )

A primeira missão de Battalio foi em 13 de junho de 1944. O alvo primário era um aeródromo na França e o local não foi escolhido por acaso. Naquele dia, possivelmente, muitos soldados americanos olhariam para o céu e veriam o desfile das frondosas fortalezas voadoras rasgarem o céu em direção ao coração da França ocupada.

Sucessivamente, até o mês de setembro, Battalio realizaria missões quase que diárias. Os alvos, em geral, eram na Alemanha; objetivos julgados estratégicos como pátios ferroviários, refinarias, fábricas de material de guerra e aeródromos. A missão que marcaria a vida de Battalio não só fisicamente, mas também em sua memória se realizou em 19 de setembro de 1944. Neste dia o esquadrão de Battalio bombardearia o pátio ferroviário da cidade de Hamm na Alemanha. Battalio vinha sendo há algumas missões o bombardeador líder. Este cargo denotava grande dose de responsabilidade e competência: o avião carregava, além do bombardeador líder, também o navegador líder. O próprio avião era o primeiro da formação e, em geral, o mais visado tanto pelas baterias de FLAK no solo quanto pelos caças alemães. Mas naqueles primeiros dias de setembro a resistência alemã se resumia muito mais ao FLAK do que ao acompanhamento da formação por caças inimigos. A maior parte das missões já era acompanhada por escolta integral, realizada pelos P-51 Mustang.O piloto do B-17 44-8017 "The Sad Sack” era o Coronel William Travis.[1]

Nas proximidades de Hamm a concentração de nuvens mostrou ser impossível a visualização do alvo. Nesse caso, abandonava-se o alvo dito primário em favor de um secundário. As tripulações, sempre que realizavam o briefing, recebiam uma lista e informações de até quatro alvos sempre em ordem de prioridade: o primeiro era o objetivo da missão, mas caso se encontrasse encoberto, o avião líder do grupo poderia decidir rumar para o alvo secundário. A concentração de FLAK foi bastante intensa sobre o alvo e Battalio haveria de ser atingido: Um estilhaço o acertou diretamente na perna esquerda. A velocidade do estilhaço e as condições da alta altitude faziam um pequeno pedaço, menor que uma tampa de caneta, um artefato mortal. O sangramento era absorvido pelas roupas grossas que Battalio vestia e, possivelmente, o navegador o tenha auxiliado com os primeiros socorros.[2]

Mesmo ferido Samuel Battalio não deixou sua responsabilidade: continuou como Bombardeador líder da missão e assim o B-17 Sad Sack voou em direção ao alvo secundário, o pátio ferroviário de Heiger.

De volta a Inglaterra Battalio foi socorrido quando a fortaleza desceu em segurança. Impressionado pela frieza de Battalio durante a missão, mesmo ferido gravemente, o Coronel Travis indicou o bravo bombardeador no relatório produzido aquele dia a receber a Cruz de Serviços Distintos (DSC – Distinguished Service Cross - Imagem ao lado). Esta condecoração - a segunda das Forças Armadas americanas - só é antecedida pela Medalha de Honra do Congresso Americano. Em 1944 foi concedida a apenas 6 homens do grupo 379º. A ordem para condecorá-lo oficialmente veio em 11 de dezembro de 1944.

Talvez como premiação, Samuel Battalio foi convidado a receber sua medalha das mãos do General Carl Spatz, comandante Estratégico da Força Aérea, em 22 de dezembro de 1944 na cidade de Paris. Spatz era o homem da Força Aérea junto do General Hap Arnold. Ambos estavam hierarquicamente ligados ao comando do supremo comandante das forças aliadas General Einsenhower. Pela primeira vez, Samuel Battalio atravessaria o canal da Mancha e sobrevoaria o território francês longe de um B-17 e sem a dura missão de lançar bombas.

A nota no livro de Antologias do 379º Grupo indica que, junto com Battalio, outro bombardeador também receberia a Cruz de Serviços Distintos: era o 1º Tenente Thomas A. Carruth. A nota informa ainda que os homens voltariam para a Inglaterra com muito champagne, conhaque e perfumes. Lamenta-se, no entanto, que a cidade de Paris estivesse sofrendo com a ação de espiões alemães em trajes militares americanos e, por conseqüência, os clubes noturnos estavam fechados. [3]

O ferimento deixou Battalio longe da batalha por um longo período. Havia realizado até ali 23 missões de combate, a maior parte delas sobre território alemão. Suas habilidades o qualificaram como instrutor no período de recuperação das tripulações mais novas. Mesmo quando os esquadrões de bombardeio não estavam envolvidos em operações de guerra, os dias não passavam em branco: os vôos de instrução eram tão comuns quanto os vôos de batalha, não interessando quão veterana fosse uma tripulação.

Battalio voaria ainda mais 3 missões em 1945. Na imagem abaixo, Battalio é o terceiro homem da esquerda para a direita. A título de curiosidade, o B-17 danificado, nesta foto de outubro de 1944, faria um pouso de emergência na Rússia em março de 45 e lá ficaria confiscado pelos aliados russos.


Com o final da guerra o Tenente Battalio decidiu continuar no serviço ativo e chegou ao posto de Coronel durante a década de 60. Pediu transferência para a reserva em 1969 e se transformou em civil assumindo um cargo em uma empresa de informática. Battalio vem a falecer em janeiro de 2004 e está enterrado no cemitério de militar de ARLINGTON, em Washington.

Samuel T. Battalio não foi apenas um veterano da II Guerra Mundial: acompanhou o desenrolar da Guerra da Coréia e assistiu o início do declínio de poder americano na guerra do Vietnã. Foi um soldado altamente condecorado. Mas certamente, de todas as suas lembranças, as que mais deveria guardar eram aquelas relativas aos meses passados no aeródromo de Kimbolton, sede de seu esquadrão na guerra.[4]



[1]http://www.8thairforce.com/members/crew.asp?acAirCraftNo='44%2D8017'&misMissionNo=206&Group='379th'
[2] 379th Bombardment Group (H) ANTHOLOGY. November 1942-July 1945. p. 262
[3] 379th Bombardment Group (H) ANTHOLOGY. November 1942-July 1945. p. 287
[4] http://www.arlingtoncemetery.net/stbattalio.htm

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