
Haviam embarcado entre os dias 29 e 1 de julho. O navio ficou três dias no porto até que a totalidade dos elementos estivessem a bordo. A operação foi coberta de sigilo e os homens não tinham idéia para onde estavam sendo removidos quando os deslocamentos se iniciaram. Os soldados, em geral, receberam uma folga extraordinária do final do dia 27 até as 18:00 horas do dia 29, afim de resolverem seus últimos problemas antes do embarque. A ordem era clara: quem não retornasse até as 18 horas seria, invariavelmente, considerado desertor.
A primeira leva de embarque, na qual estava incluído o Sargento Piske, saiu da Vila Militar no Rio de Janeiro às onze horas da noite do dia 29 via trem até o porto do Rio. Lá, os soldados se depararam com a visão do gigantesco navio de transporte de tropas americano General Mann. Este navio tinha capacidade de transportar mais de 6 mil homens, além de sua tripulação. Os soldados eram acomodados em galerias com uma média de 450 leitos em cada uma, na forma de beliches com quatro andares.
O transporte de tropas levaria ainda parte do Estado Maior da FEB – o General Mascarenhas e o General Zenóbio estavam a bordo -, o 6º RI, o Batalhão de Saúde, o 2º Grupamento de Obuses e outros elementos que integravam a 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária (1ª DIE).
O navio partiu pela manhã do dia 2 de julho de 1944. A imagem que ficou gravada na mente da maior parte dos homens naquele dia foi a do Cristo Redentor, acima no Corcovado, enviando uma benção a todos que se deslocavam para o Teatro de Operações ainda em segredo. Piske assim se recorda: “Na saída da barra, um espetáculo inesquecível aconteceu de repente. A cerração baixou um pouco e lá no alto, emoldurado por um céu azul imaculado apareceu a estátua do Cristo, no alto do Corcovado. Parecia que o Senhor nos dava adeus e nos abençoava nessa viagem, de rumo desconhecido”.[3] O general Mascarenhas, sempre magnânimo, teve a mesma impressão: “Do Corcovado, circundado de bruma, emergia o Cristo Redentor, fitando os seus fiéis que para outras terras partiam com o objetivo de, ombro a ombro com os nossos aliados, defender o rico patrimônio da civilização Cristã”.[4]
A rotina dentro do navio aos poucos foi tomando os homens; os coletes salva-vidas não poderiam ser tirados em hipótese nenhuma; os enjôos afetaram a maior parte da tropa e o medo constante de um ataque submarino afetava a rotina diária. Mas de uma coisa Piske se lembra muito bem: as refeições a bordo do General Mann eram ótimas. Ao estilo americano, possuíam bacon, suco de frutas e as frutas, propriamente ditas. Acostumados ao rancho do Exército Brasileiro, a comida foi o primeiro choque que os brasileiros tomaram ao conhecer a organização de guerra do exército americano.
No dia 15 de julho já estavam na área do Mediterrâneo. O Tenente Udihara reconhece as ilhas Egadi, que ficam próximas as costas de Sicília e advinha onde o navio iria parar: Nápoles: “Já desde ontem estava desvendando o segredo, de todos conhecidos, do nosso destino: Nápoles. Amanha pela manha lá estaremos vendo o Vesúvio”.[5]
O navio iniciou os procedimentos para atracar no porto de Nápoles. Os homens estavam ansiosos e cansados da vida do general Mann. Foram 15 dias de viagem, de enjôo, de falta do que fazer; e a grande surpresa: a baía de Nápoles, na visão de Piske “era um vasto cemitério de navios afundados!”[6]. O Vesúvio dominava a paisagem, não pelo tamanho, mas pela fumaça que saia de seu cume. Entrou em erupção pela última vez ainda naquele ano de 1944, não ocasionando danos ao ambiente. Todos se recordavam das histórias ouvidas sobre sua mais famosa erupção, ocorrida no ano 79 que enterrou uma cidade romana que ficava próxima ao vulcão.
Atracaram por volta do meio dia e o desembarque se iniciou. Vemos na imagem que ilustra este artigo soldados desembarcando carregando seus pertences e, no ombro esquerdo, o patch verde com a palavra “Brasil”. Os soldados com fuzis são militares americanos, auxiliando a operação de desembarque. Bem ao fundo, próximo a rampa de desembarque, um soldado com uma câmera filma os homens desembarcando. No alto, o restante aguarda a chamada para a descida. Pode-se enxergar também a tripulação do General Mann com cobertura branca na cabeça.
Navios de todos os tipos estavam atracados no porto. Narrando a atuação na guerra do tenente José Gonçalves, também do 6º RI, César Maximiano nos diz que aquela visão fez com que os soldados percebessem a dimensão do conflito em que se envolviam. [7] Estar na Itália significava se envolver na maior guerra de todos os tempos. E a enfrentar um inimigo que assolava a Europa desde 1939. Os soldados não sabiam o que iriam encontrar; não imaginavam como seria a resistência do inimigo nem como seria a vida dentro dos fox-holes para os homens da infantaria. Traziam, no entanto, a vontade de lutar pelo seu país.
Saindo do porto, os soldados brasileiros entraram em contato com a miséria da guerra. O tenente Udihara desceu por volta das três horas da tarde e não pode deixar de notar a pobreza e a destruição da cidade italiana. Esta foi a impressão que mais marcou os soldados brasileiros: os efeitos da guerra junto a população civil que nada tinha a fazer, além de se lamentar. Para ele o povo era “aparentemente pobre. Crianças sujas, esfarrapadas. Expressão de desanimo, tristeza, opressão, de falta de vitalidade em quase todos. (...) Por onde passamos tudo fechado e sem vida. (...) a pobreza choca de doer e deixar meio enjoado.”[8] Mulheres italianas com saias curtas se aglomeravam ao redor da coluna de soldados, curiosas. Era a prostituição que campeava pelas ruas em troca de comida, chocolate ou cigarros. Com a marcha a pé e com uniforme verde-oliva, os primeiros soldados foram confundidos com prisioneiros alemães. Mas o caldeirão étnico que formava a FEB bem como o distintivo Brasil no ombro revelou aos italianos serem aqueles soldados da liberdade. Em poucos minutos as pessoas passaram a mendigar por comida e cigarros, mas os brasileiros nada levavam a mão.
[1] PISKE, Ferdinando. Anotações do Front Italiano. Florianópolis: PCC, 1984. p. 27
[2] UDIHARA, Massaki. Um médico Brasileiro no Front. São Paulo: Hacker Editores, 2002. p. 52
[3] PISKE, p. 21
[4] MORAES, J.B. Mascarenhas. A FEB pelo seu Comandante. 2°. ed. Rio de Janeiro, 1960. p. 24
[5] UDIHARA, p. 51
[6] PISKE, p. 26
[7] GONÇALVES, José. MAXIMIANO, César. Irmãos de Armas. São Paulo, Codez, 2005. p. 60
[8] UDIHARA, p. 53
[9] MOURA, Aurélio. A luta antes da guerra. Revista Nossa História, ano 2 nº 15 , janeiro 2005. p. 21